Após 10 anos, lei do manejo florestal comunitário continua pendente no Pará

Diante das altas nas taxas de desmatamento na Amazônia, a criação da política estadual do manejo florestal comunitário pelo Governo do Pará representa um esforço exemplar para a manutenção das florestas e proteção dos povos e comunidades tradicionais. No entanto, o processo de formulação da política se arrasta há cerca de 10 anos

Idealizada para atender às demandas dos povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares que se relacionam com áreas de florestas públicas ou coletivas, a política estadual de Manejo Florestal Comunitário e Familiar tem sido uma promessa adiada há dez anos por diferentes gestões do Governo do Pará.

Após diversas consultas e debates públicos, realizados em diferentes regiões do estado desde o ano de 2012, uma minuta de decreto estadual chegou a ser elaborada por um grupo de trabalho interinstitucional, mas até hoje as organizações públicas, não-governamentais e as associações de base comunitária envolvidas não obtiveram retorno em relação à proposta.

Uma das justificativas para a demora seria a ausência, por parte do governo estadual, de um protocolo de consulta pública a todas as comunidades e povos atingidos pela política.

A professora Roberta Coelho, do Instituto Federal do Pará (IFPA) – Campus Castanhal, vem participando das discussões sobre a política e aponta que 10 anos representam tempo suficiente para a definição dos instrumentos de escuta por parte do governo estadual. Em sua avaliação, a demora do Estado em promulgar a lei envolve a proteção dos interesses de diversos setores econômicos que podem ser contrariados, na medida em que uma política desse tipo definirá os usos possíveis e os limites para os usos das florestas públicas e territórios coletivos.

“É muito político a não efetivação da política de manejo florestal comunitário e familiar”, enfatiza Roberta, apontando que a conjuntura política é de desmonte dos órgãos nacionais de fiscalização e de constantes altas no desmatamento no estado.

Segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente na Amazônia (Imazon), o Pará manteve em 2021 a liderança histórica no ranking dos que mais desmatam, com 4.037 km² de florestas derrubadas. Essa área representa quase 40% de toda a devastação registrada na Amazônia no último ano, calculada em 10.362 Km².

A tendência de aumento continua em 2022. Apenas em fevereiro, o estado teve 82 km² de florestas devastadas, o que representa um incremento superior a 20% em relação ao mesmo mês do ano passado. No mesmo período, o estado teve ainda metade das 10 unidades de conservação mais desmatadas em toda a região amazônica.

Liderança na comunidade de Santo Ezequiel Moreno, do Projeto Estadual de Assentamento Agroextrativista Acuti Pereira, em Portel, Teofro Gomes Lacerda ressalta que a ausência de regulamentação implica na falta de espaço para que as populações e comunidades levem as suas reais demandas, como a de regularização fundiária e de licenciamento de atividades tradicionais, aos órgãos estaduais.

“Quem tem conseguido aprovar planos de manejo são os que não moram nos territórios, são os empresários”, afirma. “É uma política alheia a quem tem direitos [de usar a terra e manejar os recursos], que são as comunidades tradicionais”.

Teofro argumenta ainda que uma política de manejo florestal por comunidades e famílias envolve a exploração dos produtos não-madeireiros, como o açaí e outros frutos, óleos e sementes, entre outros. “Daqui a pouco, a falta de políticas de combate à extração ilegal e a ausência de regulamentação permitirão que os empresários dominem essas atividades, como já é feito com a madeira”, comenta.

A elaboração de uma lei de manejo florestal comunitário está prevista no Plano Amazônia Agora, apresentado pelo governador Helder Barbalho na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada em Glasgow no final do ano passado. No entanto, no painel de monitoramento do plano, a atividade consta apenas como “em fase de execução”, sem maiores detalhes ou efetivo diálogo com as organizações do setor.

Questionada por ofício sobre o estágio atual do processo de tramitação da política, a titular do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-Bio), Karla Bengtson, respondeu que a minuta foi enviada à Procuradoria Geral do Estado, “com todos os ajustes realizados pelas reuniões preparatórias conjuntas com as instituições envolvidas”. Segundo a titular, “após a análise da PGE, os ajustes de suas recomendações, a minuta será encaminhada para a Assembleia Legislativa do Estado do Pará”.

Preocupação – O analista socioambiental do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Alison Castilho, lembra que, desde o início, as discussões sobre a política do manejo comunitário partiram de iniciativas populares, com a participação de associações de base comunitária. A minuta enviada ao Governo do Pará teria sido um dos resultados dessa ação coletiva, mas após a entrega, as organizações da sociedade civil e as comunidades envolvidas não tiveram mais retorno sobre a proposta.

“Nossa expectativa era a de que houvesse maior transparência no processo. Não sabemos, inclusive, qual a forma e o conteúdo do documento que será encaminhado à votação”, relata.

Outra questão diz respeito à governança para a tramitação de um projeto de lei na Alepa. Ao ser enviada ao legislativo, a minuta da política pode ter a forma de decreto complementar à Lei de Florestas Públicas do Estado do Pará, a ser assinado pelo governador do Pará, ou de projeto de lei, que daria maior segurança jurídica ao texto, mas que também envolve possibilidades de mudanças em seu conteúdo.

“A nossa grande preocupação é que a internalização dessa discussão como projeto de lei no estado poderia desconfigurar completamente tudo que foi construído na discussão da política com diversos atores da sociedade desde 2012”, aponta Alison. “A questão aqui é como assegurar a governança capaz de garantir a tramitação de um projeto de lei dessa natureza sem a desconfiguração do mesmo”.

De acordo com o analista, um exemplo que materializa essa preocupação é a Lei nº 8.878/2019, que dispõe sobre a regularização fundiária de ocupações rurais e não rurais em terras públicas do estado do Pará. Depois de aprovada, organizações da sociedade civil e mesmo dos Ministérios Públicos federal e estadual produziram pareceres apontando a lei como inconstitucional, por facilitar a grilagem de terras públicas no estado.

“A chamada Lei da Grilagem foi aprovada a toque de caixa na Assembleia Legislativa. É um exemplo muito explícito de como essas discussões, que muitas vezes partem de iniciativas e anseios populares, podem ser completamente deturpadas”, complementa Alison.
Para a promotora pública do Estado do Pará, Ione Nakamura, o maior entrave à regulamentação tem sido a definição formal de um processo amplo e inclusivo de consulta às diversas comunidades afetadas pela política no estado do Pará.

“O nosso objetivo é alcançar uma forma que contemple as diversas comunidades tradicionais do estado do Pará que precisam dessa política, [sob] a forma como elas gostariam de ser consultadas pelo Estado, para que essa política realmente seja aprovada, tenha o conhecimento e as contribuições dessas populações”, assegura a promotora. “E, para que o Estado ao sancionar essa lei ou decreto, realmente esteja cumprindo o seu dever constitucional de fazer com que os direitos dessas populações sejam observados, cumpridos e protegidos pela política estadual”.

Segundo a promotora, na prática, a ausência de regulamentação faz com que os órgãos de controle e fiscalização ambiental não possuam procedimentos adequados para as atividades realizadas por diversas comunidades que usam tradicionalmente a floresta. “Sejam os usos para a coleta de sementes, de frutos, como também o madeireiro para a subsistência ou a construção de casas, barcos, cercas e também para a movelaria, essas atividades dessas comunidades encontram ainda hoje muita dificuldade para a sua legalização”, explica.

O Observatório do MFCF entrou em contato com a assessoria de comunicação e o gabinete da Procuradoria Geral do Estado, a fim de saber o status de análise da minuta da política estadual de MFCF, mas não obteve resposta até o fechamento do boletim

Texto: Brenda Taketa | Imagens: Arquivo IEB

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