Em evento realizado pela rede Diálogos Pró-Açaí, em Belém (PA), cozinhas coletivas despontam como estratégias de combate à fome

Iniciativa reuniu agroextrativistas, quilombolas, representantes de ONGs e dos governos federal e estadual

A fome tem cara, cor, gênero e local. Os maiores índices estão nas regiões Nordeste e na Amazônia. Somente aqui no Pará,  53% dos domicílios de famílias com crianças de até 10 anos estão em situação de insegurança alimentar moderada ou grave”. Com essa afirmação, Márcia Muchagata, coordenadora geral de segurança alimentar e nutricional do  Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) iniciou sua fala no evento “Açaí: força da sociobioeconomia amazônica”, realizado em Belém nos dias 31 de maio, 1 e 2 de junho.

Ao lado dela, estavam representantes dos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA); do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA); da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR); da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); do Serviço Florestal Brasileiro (SFB); da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agropecuária e da Pesca (Sedap/PA); da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas/PA); do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal do Pará (Cecane/UFPA); e facilitadores de manejo de mínimo impacto, reunidos para debater políticas públicas em resposta aos desafios para a sustentabilidade da cadeia de valor do açaí.

De ativos tecnológicos a programas estruturantes, em 15 minutos, cada pasta apresentou suas principais ações e programas relacionados ao desenvolvimento da cadeia do fruto que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), movimenta cerca de R$ 6 bilhões ao ano.

Após as falas governamentais, Teofro Gomes, agroextrativista da comunidade Santo Ezequiel Moreno, situada em Portel, no Marajó (PA), perguntou quem, entre os colegas de mesa e os demais participantes do evento, já esteve em sua comunidade. Pouquíssimos braços no ar. Enquanto constatava o que já parecia saber, Teofro foi enfático “política pública não chega na comunidade e não dá pra discutir isso sem discutir educação”.

Uma das lideranças de Santo Ezequiel Moreno, Teofro Gomes participou da mesa redonda sobre políticas públicas, realizada pela rede Diálogos Pró-Açaí em Belém (PA)

Do quilombo Jocojó, situado em Gurupá, também no Marajó, Fábio Muniz seguiu a deixa de Teofro e afirmou que estava surpreso em ouvir tantas políticas públicas. O quilombola relatou períodos pontuais de apoio, citando organizações da sociedade civil e iniciativas de assistência técnica, mas apresentou o que chamou de uma zona de desconforto, onde enfrentam assédios de madeireiras e empresas da área do carbono, finalizando com uma cobrança. “O que o Estado quer é manter a floresta em pé. E sobra pra quem? Para os ribeirinhos? O que ele [o Estado] coloca para que eu, homem e mulher do campo, possa entrar no diálogo da conservação? Se houver uma política pública, lá estamos nós”, disse.

Para a coordenadora da Cooperativa Manejaí e da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Alto Pacajá, Gracionice Corrêa, falar de açaí e das suas diferentes formas de produção, sem antes pensar na segurança alimentar e no conforto dos que estão no território, parece não fazer sentido. Segundo ela, a reunião de agentes governamentais e de lideranças agroextrativistas foi um dos pontos altos do evento.

Trazer esses encontros até nós é fundamental, foi um espaço muito bom, bem aberto para que a gente pudesse dialogar com os gestores governamentais,  eles precisam nos ouvir para que conheçam onde estão as comunidades, onde estão as necessidades e para que eles possam, de uma forma metodológica melhor, fazer essas políticas públicas chegarem lá, traçando uma metodologia diferenciada, compreendendo as nossas realidades”, disse coordenadora da Cooperativa Manejaí, Gracionice Corrêa.

Cozinhas Coletivas – Em conversa com Márcia Muchagata, a coordenadora do MDS afirmou que hoje, segundo dados da  Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), o Brasil possui 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave e que o meio rural concentra o maior percentual de famílias em situação de insegurança.

Durante o período da pandemia, principalmente por conta da ausência de políticas públicas para lidar com a questão da fome, a sociedade civil desempenhou um papel extremamente importante, a exemplo dos bancos de alimentos e das cozinhas comunitárias, onde grupos de pessoas se reuniram com alimentos doados, mão de obra voluntária, equipamentos, à medida que conseguiam, para ofertar comida para as populações em insegurança alimentar”, pontuou Márcia.

Márcia Muchagata destaca o papel das cozinhas coletivas durante o evento “Açaí: força da sociobioeconomia amazônica”

Após contar sobre os esforços do MDS para fazer um levantamento das cozinhas comunitárias existentes no país para identificar como que elas estão organizadas, que tipo de recurso e de equipamentos possuem, Muchagata, afirmou que “as cozinhas são muito importantes e o que a gente quer é que elas também possam ser receptoras de alimentos produzidos pela agricultura familiar no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), fazendo com que se tenha circuitos curtos de alimentação, onde  é utilizado um produto que é produzido com cultura e modos de fazer local”.

A comunidade de Santo Ezequiel Moreno, de forma inovadora e exemplar, criou, ainda em 2018, a Cozinha Agroextrativista Iaçá, idealizada por um grupo de 20 mulheres, que se organizou para produzir alimentos de qualidade e em quantidade suficiente para atender à demanda de escolas municipais.

A iniciativa foi uma conquista da Associação de Moradores Agroextrativistas do Rio Acutipereira (ATAA), do Fundo Açaí, da Associação dos Moradores Agroextrativistas do Assentamento Acutipereira (Asmoga), em parceria com o Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e Fundo Socioambiental Caixa, junto ao projeto “Mulheres Marajoaras”.

Waldiléia Rendeiro, analista socioambiental do IEB, aponta que a cozinha é um espaço coletivo importante para as mulheres e comunidade, visa potencializar a produção da culinária local , a segurança alimentar e contribui para a geração de renda. “O espaço tem sido estratégico como uma ferramenta que pode contribuir para ampliar as possibilidades de autonomia financeira, de empoderamento e fortalecer outros processos mais abrangentes no debate local de desenvolvimento socioeconômico e ambiental. Por isso é fundamental continuar investindo no fortalecimento organizacional dos coletivos de mulheres. Inclusive, esse trabalho também está sendo incentivado no Amapá, a partir de uma articulação entre mulheres agroextrativistas”, conta a analista.

Cozinha Iaçá – Após 5 anos, a cozinha Iaçá continua desempenhando um papel importante na comunidade de Santo Ezequiel Moreno. “A cozinha veio valorizar o trabalho das mulheres, e a gente valoriza os produtos que a comunidade tem, né? Hoje a gente não fica só aqui, a gente viaja, vai pra outros estados e já fomos até convidadas para fora do Brasil.“, contou Sônia do Socorro, da comunidade Santo Ezequiel Moreno, durante um evento realizado recentemente em Portel. Representada por Ana Maria, a cozinha foi a fornecedora dos lanches da manhã e da tarde durante os três dias do evento “Açaí: força da sociobioeconomia amazônica”, em Belém.

Rede – A cozinha Iaçá integra a Articulação de Mulheres Agroextrativistas na Amazônia (A-mana), criada a partir do projeto “Articulação em Rede”, com o objetivo de envolver coletivos dos estados do Pará e Amapá para dialogar sobre os desafios e oportunidades para a inclusão socioprodutiva de mulheres. A articulação também conta com o apoio do Observatório do Manejo Florestal, Comunitário e Familiar (OMFCF), iniciativa que articula diversas organizações da sociedade civil, institutos de ensino, pesquisa e comunidades, com a missão de promover o manejo florestal como uma estratégia relevante, consistente e viável para a sustentabilidade da Amazônia.

Atualmente o Observatório é composto por 54 organizações, das quais 34 são organizações comunitárias – associações, cooperativas ou mesmo organizações representativas de movimentos sociais. Juntas, essas organizações são responsáveis pela gestão de cerca de seis milhões de hectares em unidades de conservação distintas na Amazônia.

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