Entenda o contexto das invasões no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Virola Jatobá no município onde a missionária norte-americana Dorothy Stang foi assassinada, em 2005
Por Lucas Filho
No dia 07 de outubro de 2019 cerca de 20 pessoas foram detidas no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Virola Jatobá em Anapu, sudoeste do Pará, por ocuparem indevidamente sua reserva Legal. O grupo foi direcionado para a delegacia de Altamira e autuado por invasão e descumprimento de decisão judicial de reintegração de posse a favor do PDS, tendo em vista que alguns já haviam sido retirados do assentamento em uma operação de fiscalização ambiental, em setembro de 2009.
Diante de um contexto problemático, essa ocupação ocorrida em outubro, provavelmente não será a última. O PDS que traz o legado de Dorothy Mae Stang é rico em recursos florestais e desperta o interesses de diferentes grupos.
O Observatório do Manejo Florestal, Comunitário e Familiar (OMFCF) busca esclarecer os principais desafios no PDS e como as ocupações irregulares têm dificultado o desenvolvimento do MFCF na região. Acompanhe a entrevista com a pesquisadora da Universidade Federal do Pará, Noemi Porro, que há quase duas décadas acompanha o assentamento.
Nos últimos dois anos o assentamento Virola Jatobá tem sido alvo de invasões e ocupações. Como elas têm ocorrido?
As invasões no PDS Virola Jatobá iniciaram exatamente no dia 15 de novembro de 2017, quando mais de uma centena de pessoas em motocicletas adentraram o PDS e se dirigiram à Reserva Legal. Eles iniciaram a derrubada de árvores e a instalação de acampamentos de lona. Houve o suporte de caminhonete que levava galões de combustível e fardos de alimentos e outros materiais, demonstrando boa organização e articulação dos invasores. A derruba realizada em pleno mês de novembro demonstra que não estamos falando aqui da derruba para roça de camponeses sem terra, nem da legítima luta pela terra de trabalho.
É importante registrar que, desde 2013, a Associação Virola Jatobá (AVJ) vem denunciando a entrada desordenada e irregular de indivíduos ou famílias nos lotes do PDS. Havia casos de ocupação espontânea de lotes por famílias com perfil de beneficiário de reforma agrária e potencial para as especificidades de PDS. Porém, havia também um processo consistente de uma “invasão” paulatina de famílias apoiadas por pecuaristas e madeireiros, provenientes de outros assentamentos sob reconcentração fundiária, nos municípios de Quatro Bocas, Itupiranga, Marabá, Novo Repartimento, São Geraldo do Araguaia.
Com essa complexidade, como traçar um perfil do grupo que busca ocupar as áreas do assentamento ilegalmente?
É importante ressaltar que a portaria que cria o PDS como uma modalidade de assentamento ambientalmente diferenciado define o perfil do beneficiário. Assim, podemos dizer que a invasão de famílias sem perfil de agricultor familiar em busca de terra em PDS já vinha ocorrendo antes de 2017. Assim, as famílias pioneiras, que lutaram pelo assentamento, apoiadas por irmã Dorothy sabem que, por um lado, há famílias sem terra, que adentram a área em boa fé, buscando seu direito à terra de trabalho, mesmo que não tenham seus nomes na lista de seleção do INCRA. Mas por outro lado, também denunciam o processo dos que entram no PDS em má fé, geralmente financiados por pecuaristas e madeireiros interessados na falência de uma proposta de reforma agrária com ênfase ambiental. Muitos desses ocupantes irregulares já tinham seus nomes constantes na Relação de Beneficiário em outros assentamentos a sudeste, e sabem que feita a vistoria do INCRA, terão sua ocupação questionada. Essas famílias saem tão logo consigam vender o lote e retirar dali a condição para uma nova ocupação. A cada passo dessas ocupações irregulares, uma parte da floresta é destruída, e quem realmente ganha com isso nem são elas. Nesse sentido, não são mentores, mas partícipes do mercado ilegal de toras e terras públicas, minando o sentido da luta pela terra. Esses deslocamentos para invasões não devem ser confundidos com os deslocamentos tradicionais, conceituados como constitutivos do próprio campesinato dessa parte da Amazônia.
Na sua avaliação, quem são os grupos favorecidos com essas ocupações?
Entendemos que esses posicionamentos equivocados ocorrem em contextos provocados por aqueles que realmente lucram com a instabilidade dos assentamentos: os madeireiros, pecuaristas e políticos inidôneos, assim como o próprio Estado que jamais conseguiu implantar a reforma agrária, mas simplesmente distribuiu terras na Amazônia, para absorver os destituídos das terras em sua origem, apropriadas injusta e impunemente.
Os reais invasores são aqueles que lucram com a invasão, pois o lucro é o que os motiva. A justiça está avaliando se, além dos grileiros identificados, a direção da Associação Liberdade do Povo (associação das famílias contrárias ao PDS) tem responsabilidade pela invasão, sendo ré, conforme processo movido pelas Defensorias Públicas da União e do Estado, com AVJ e INCRA como autores.
O que motiva os moradores do PDS a realizar o manejo florestal em suas áreas?
O PDS Virola Jatobá é um projeto de assentamento ambientalmente diferenciado. É a modalidade de regularização fundiária que permite o acesso à floresta ao agricultor familiar, mesmo que não seja identificado como povo ou comunidade tradicional. Essas famílias geralmente não têm a tradição do extrativismo, nem um modo de vida fundado na relação tradicional com a floresta. Por isso, fora de seu lote, ou seja, da área de uso alternativo onde pratica a agricultura familiar, legalmente, essas famílias têm duas opções: ou deixar a floresta preservada ou se relacionar com a floresta através das regras da engenharia florestal propostas pelo Estado: o Manejo Florestal Comunitário aprovado pela SEMAS.
Porém, deixar a floresta preservada deixou de ser uma opção para essas famílias, pois o Estado não consegue fiscalizar as invasões promovidas pelos madeireiros ilegais, o que fatalmente ocorre se não houver presença da comunidade nessas vastas áreas. Como a associação que representa essas famílias juridicamente é a responsável pela Reserva Legal coletiva dos PDS, fica a “opção” de realizar o Manejo Florestal Comunitário, apesar dos muitos entraves que próprio governo lhes impõe.
Como as ocupações irregulares prejudicam as operações de manejo florestal no assentamento?
Houve ano em que famílias chegaram em um ônibus fretado, sem qualquer acordo com o INCRA ou com a AVJ, e se instalaram nos lotes de uma vicinal mais distante. Em pouco tempo, estranhamente, esses lotes estavam cobertos por pastos, sem que essas famílias possuíssem gado. Muitas delas já deixaram o PDS, inclusive requerendo a repartição do valor obtido com o Manejo florestal Comunitário. Pegavam o chamado “dinheiro do manejo” e se mudavam, abrindo espaço para novos ocupantes irregulares.
Em dezembro de 2017, um mês após a invasão, os três caminhões do comprador certificado que vinham buscar a colheita florestal da AVJ foram bloqueados pelos invasores – muitos dos ocupantes irregulares do PDS estavam nesse bloqueio, e eles próprios apontaram o presidente Associação Liberdade do Povo como mandante. Por isso, a Justiça Federal deve apurar. Essas toras só foram vendidas no início de 2019, com perda de grande parte das madeiras brancas e parte do valor das madeiras vermelhas. A UPA já inventariada para exploração em 2018 foi violada e vastas áreas foram desmatadas e ou tiveram os acapus saqueados.
Mesmo quando as famílias se apropriam do significado do Manejo Florestal Comunitário, e o elegem como instrumento de sua relação com a floresta, suas operações não estão a salvo: a invasão do PDS Virola Jatobá é um exemplo disso. Desde o dia 16 de novembro de 2017, a Associação denunciou e demandou a ação do INCRA, e depois de MPF, MPE, DPU, DPE, Ibama, Semas, Deca, Dema, PF e PM. Uma extensa lista de reuniões e de documentos protocolados nos diversos órgãos demonstram a omissão do governo. E, como muitas das famílias, instaladas pelos pecuaristas e madeireiros, já residiam no PDS, correu a notícia de que as próprias famílias do PDS estavam na invasão, provocando uma falta de apoio também da sociedade civil. As famílias pioneiras e os parceiros ficaram reféns desse contraditório contexto.
A invasão da reserva legal do PDS Virola Jatobá também violou um estatuto camponês essencial: o respeito à terra de trabalho. Aqueles que trabalharam no manejo florestal não conseguiam admitir que camponeses como eles pudessem desrespeitar suas áreas de trabalho, sendo que todos sabiam que haviam trabalhado nas áreas invadidas, além do próprio alojamento da AVJ.
Como tem sido a relação dos moradores do PDS com outras instituições ligadas ao desenvolvimento do MFCF?
Sob um difícil acordo empresa-comunidade, incentivado pelo IBAMA, com apoio do PROMANEJO, assinado em 2007, a Associação Virola Jatobá teve como experiência 5 anos de manejo florestal executado por empresa madeireira. Com a Instrução Normativa 65 do INCRA, finalizou-se o acordo em 2012.
As famílias pioneiras pertencentes à Associação Virola Jatobá já haviam fundado uma cooperativa, a COOPAF, e propuseram-se a realizar as operações de Manejo Florestal Comunitário. Através de um termo de execução descentralizada do INCRA para a UFPA, com apoio da Embrapa, foi possível contratar uma equipe de técnicos do Instituto Floresta Tropical e iniciar um Plano Operacional Anual (POA) genuinamente comunitário.
Foram dois anos de dificuldades para conciliar o calendário agrícola e o calendário florestal, equilibrar os comandos de lideranças e profissionais florestais e agronômicas, aceitar os limites de conhecimentos de ambas partes, ajustar os processos de gestão, especialmente prestação de contas e, principalmente, gerenciar a etapa com dependência de maquinário de altos custos e riscos. No âmbito externo, enfrentou-se a difícil relação com a SEMAS e a distância com um INCRA mais voltado às iniciativas agrícolas.
Nesse contexto complexo como tem sido o desempenho dos órgãos públicos na mediação e resolução de conflitos?
Os órgãos têm agido com atraso ou se omitem, sem uma diretriz institucional para o tratamento desse tipo de conflito aparentemente entre pares. No caso, apenas com a decisão judicial a favor da reintegração de posse do PDS, por interveniência do DPU e DPE, o INCRA passou a atuar efetivamente. Atualmente há riscos de retrocesso, mas está em curso um importante relatório do Incra, que sintetiza os esforços realizados por servidores comprometidos, nesses últimos meses, e assume concretamente o posicionamento devido como órgão de reforma agrária. Esse posicionamento de servidores idôneos é notável no atual contexto institucional.
Assim, temos que refletir sobre a situação dos órgãos nestes últimos anos. No Incra, por exemplo, houve um esforço de instalar equipes de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES) no governo Lula, contudo, cabe a crítica sobre a instabilidade a que essas equipes foram submetidas no governo Dilma, além da baixa qualidade de atuação em relação a Manejo Florestal.
A questão da conciliação entre a agricultura familiar e o manejo florestal comunitário não foram objeto de efetiva atenção. Financiamentos foram pontuais e não conseguiram se firmar como política ou programa, em contraste com financiamentos aos grandes projetos de infraestrutura. Assim, as propostas do atual governo não encontraram obstáculos consolidados dentro do INCRA, por exemplo. Essa situação relativiza o papel das instituições e ressalta o valor dos agentes sociais que as constroem: quando as instituições enfraquecem, a agência dos que as constituem é o que validará sua existência.
Como está manejo florestal comunitário do Virola, você pode atualizar a situação?
Há atrasos na avaliação do POA 7 e do licenciamento do novo Plano de Manejo Florestal Comunitário. Com o prejuízo causado pela invasão a comunidade não tem recurso suficiente para próxima exploração. As famílias não se identificam como extrativistas de recursos não madeireiros, mas há um grupo que se apropriou do Manejo Florestal Comunitário madeireiro. Em 2017, havia cerca de 30 manejadores no total, atualmente são cerca de 15. A safra passada foi de cerca de 6.500 metros cúbicos, sendo vendidos cerca de 4.800 metros cúbicos em valores bem abaixo do mercado. Para a próxima UPA já há compradores interessados, mas não são certificados e ainda estão negociando com a comunidade.
Qual a maior preocupação dos comunitários hoje em dia e como as pessoas que estão lendo essa entrevista pode ajudá-los?
A maior preocupação é que haja novas invasões. Há atuações de senadores, deputados e autoridades do atual governo que restringem a missão de órgãos como IBAMA, ICMBio, INCRA e até MPF. Nesse sentido, os servidores idôneos que insistem em cumprir com a missão dos órgãos para os quais foram contratados têm sido injustamente denunciados pelos invasores de Assentamentos de Reforma Agrária. A sociedade civil não pode se omitir nesse momento. As pessoas que lerem a entrevista poderiam manter contatos com as próprias famílias, visitando o PDS e trocando experiências. Todo apoio a comunidade é bem vindo. E uma articulação mais ampla em defesa dos Assentamentos de Reforma Agrária e do Manejo Florestal Comunitário é extremamente necessária nesse contexto.
Entre em contato com o PDS Virola Jatobá: pdsvirolajatoba@gmail.com
Foto: Acervo IEB e PDS Virola Jatobá